PL que criminaliza o funk pode dificultar movimento que vem erradicando a pobreza nas periferias, diz empresária cultural

Crédito: arquivo pessoal

Projetos de lei que tramitam na Câmara Municipal de Belo Horizonte podem restringir manifestações culturais essenciais para a ascensão social de jovens periféricos

Nascidos da realidade crua das periferias, o funk e o trap se transformaram em pontes para uma vida melhor em meios legítimos de ascensão por meio do talento e da arte. No entanto, as PLs 89/2025 e 25/2025, embora tenham como intenção combater conteúdos considerados ofensivos ou com apologia ao crime, acabam tocando em um terreno delicado: a subjetividade da arte e o desenvolvimento social

Para especialistas e profissionais da economia criativa, é essencial ponderar os efeitos que uma legislação ampla pode ter sobre gêneros musicais inteiros — inclusive sobre artistas que não promovem discursos ofensivos, mas serão afetados por fazerem parte do gênero em questão. As propostas, contudo, ignoram justamente a possibilidade de cantar a própria realidade que muitos jovens encontram forças para mudá-la. 

“Música é expressão, é contexto, é vivência. É muito difícil, e perigoso, legislar sobre o que é ou não ‘aceitável’ em um gênero artístico. Quem vai decidir o que pode ser dito? Que critérios serão usados? Existe o risco real de que artistas, que estão mudando de vida e impactando suas comunidades de forma positiva, sejam afetados por uma generalização”, aponta Maria Laura Tergilene, empresária cultural e CEO da Fábrica Criativa, plataforma que atua há mais de dez anos desenvolvendo talentos de diversos gêneros musicais.

Maria Laura, empresária cultural e CEO da Fábrica Criativa (Crédito: Sofia Arnaud Fotógrafa)

Com sede em Belo Horizonte e atuação internacional, a Fábrica Criativa é um dos maiores ecossistemas culturais independentes do Brasil. A empresa que nasceu em meio a música urbana, hoje oferece estrutura profissional completa, que conta com gestão de carreira, capacitação, produção, marketing e acompanhamento artístico, e já impactou diretamente mais de 500 artistas, com milhares de pessoas alcançadas por seus eventos e ações.

Embora atenda artistas de todos os estilos, Maria Laura afirma que os gêneros urbanos funk e trap, em especial, vêm se destacando como verdadeiras ferramentas de transformação social nas periferias. “Temos trabalhado na carreira de jovens que deixaram situações de extrema pobreza e vulnerabilidade para construir carreiras legítimas na música. O funk de BH é hoje um dos gêneros mais ouvidos do Brasil, e não por acaso. Ele carrega identidade, contexto, força. E mais do que isso: ele tem mudado vidas”, explica. 

A história de Xenon: da periferia para os palcos internacionais

Um dos exemplos mais simbólicos desse movimento é o do cantor Xenon, artista que faz parte da Fábrica Criativa, que saiu da periferia da Grande BH e viu na música a possibilidade de um novo caminho. Com histórico de vulnerabilidade social e envolvimento encerrado com o crime, ele apostou no funk, se profissionalizou, conquistou seu espaço como hitmaker em uma trajetória de superação, realizou turnês internacionais, organizadas pela própria Fábrica Criativa, e hoje vive uma nova fase ao lado da esposa e da filha recém-nascida. Estável, consciente e com letras mais leves.

Crédito: Thiago Misan

“A música que incomoda é o reflexo de uma realidade que preferem ignorar. Mas silenciar essa realidade não faz com que ela deixe de existir. Só impede que ela mude. Não é crime cantar o que se vive. Crime é negar oportunidade pra quem só tem a arte como saída. Eu sou a prova viva de que o funk não instiga a criminalidade, ele faz o contrário, tira pessoas do crime”, afirma Xenon. 

Uma alternativa inteligente: fortalecer, não cortar

Para Maria Laura, uma das soluções mais viáveis não é reprimir, mas sim investir com estratégia. O apoio público, mesmo que pequeno, tem grande impacto na trajetória de um artista da periferia. Em vez de cortar esse suporte, a proposta é criar editais e programas que estimulem letras mais construtivas e conscientes, com incentivo financeiro real e oportunidades profissionais concretas.

“Tenho certeza de que, se um artista tiver apoio para cantar uma nova fase da sua vida, ele vai escolher esse caminho. O problema é que, hoje, ele só tem palco quando canta a dor. Precisamos criar oportunidades para que ele também cante a esperança. E isso se faz com investimento, não com censura”, defende.

A criminalização da arte, segundo especialistas, costuma ser uma reação simplista a questões profundas que exigem investimento em cultura, educação e escuta ativa. A própria ONU, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabeleceu a erradicação da pobreza como sua prioridade número 1. E é exatamente isso que a música urbana tem feito: retirado jovens da miséria, gerado renda, propósito e dignidade.

Maria Laura acredita que se essa PL for aprovada, o impacto não será apenas simbólico. Vai atingir a vida de milhares de famílias que dependem do funk e do trap. Profissionais como artistas, produtores, DJs, dançarinos, coreógrafos, fotógrafos, estilistas e outros especialistas técnicos. Trata-se de uma cadeia produtiva que, por si só, realiza funções de distribuição de renda, gerar emprego e dar dignidade.

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